PRAZO PRORROGADO ATÉ 21 DE MARÇO DE 2023 REVISTA ARA 14

A equipe editorial da Revista ARA, prorrogou o prazo de submissão de artigos da edição ARA 14 com o tema “[…] Brilhar um brilho eterno, Gente é para brilhar […]”

ENVIE SUA CONTRIBUIÇÃO ATÉ terça-feira  DIA 21 DE MARÇO DE 2023, participe e colabore com a Revista ARA.

https://www.revistas.usp.br/revistaara

Uma publicação do GRUPO MUSEU/PATRIMÔNIO – GMP  FAUUSP  

 

Chamada Aberta ARA 14 com o tema : “[…] Brilhar um brilho eterno, Gente é para brilhar […]”

Envie sua contribuição até o dia 7 de Março de 2023

para a Edição ARA 14,

“[…] Brilhar um brilho eterno, Gente é para brilhar 1[…]”

texto de Adrienne Firmo – Baixe aqui o texto completo da chamada

Se o mundo ficar pesado Eu vou pedir emprestado A palavra poesia […] Se acontecer afinal De entrar em nosso quintal A palavra tirania Pegue o tambor e o ganzá Vamos pra rua gritar A palavra utopia.             (JONATHAN SILVA, Samba da utopia, 2018)

Na noite do dia 02 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções consumiu a maior parte do acervo histórico e científico do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, bem como parcela do edifício da sede – evento entre outros de devastação de órgãos de cultura e educação ocorridos em período próximo – a transformar luzeiro em cinzas e materializar as mazelas e os sufocamentos que assolariam o país nos anos seguintes, sob um governo de intenções totalitárias que arrastaria o Brasil e seu povo a uma série de crises econômicas, políticas, sociais, ambientais e sanitárias, lançando-nos à acentuação da literalidade de um Real cruento, afastando-nos de metáforas ou alegorias, por meio do achatamento propositado de nossas dimensões culturais e educacionais, expressivas de nosso ser comum e dependentes de políticas públicas que as impulsionem. Projeto este iniciado poucos anos antes por meio de um golpe ao governo democraticamente eleito, em 2014, e instalação de acirrado programa neoliberal e excludente, orientado pelo documento chamado “Uma ponte para o futuro” (2015)2, que, por um lado, reeditava o chicê de Brasil como país do futuro, a nos malograr o presente, por outro, ainda, nos impõe a considerações sobre o devir povo e país que nos propomos enquanto indivíduos e sociedade, porque “a gente quer viver uma nação, a gente quer ser um cidadão”3.

O legado desse período, curto, mas intenso em suas investidas destrutivas, põe-nos diante de escombros e destroços pessoais e coletivos, como os da perda de direitos sociais, da pauperização, da devastação do meio ambiente, do embotamento psíquico e da morte, concretamente experimentada na perda de quase 700 mil pessoas pela Covid 19, institucionalmente impulsionada, recolocando a pergunta sobre nosso futuro nos termos de como dotar esses fragmento presentes de significados que nos reorganizem em sociedade voltada para o bem comum e engendrada para o bem viver coletivo.

O conceito de ruína, conforme elaborado por Walter Benjamin (1892-1940), pode ajudar-nos a iluminar as sendas por que caminharemos, enquanto trevas ainda nos rondam, estaria ligado a uma ação histórico-destrutiva, seus fragmentos seriam objetos possíveis de serem deslocados do tempo linear, pelo rompimento no tempo progressivo, a fim de expressar o caráter destrutivo da própria história e, assim, permitir a antecipação de catástrofes vindouras, justamente pela consciência histórica neles presente, de modo a libertar o futuro que o passado não teve, porque, para Benjamin, a história não é linear, mas “um tempo saturado de agoras”4.

Em Origem do drama trágico alemão (2011), Benjamin considera a obra de arte, o que tomamos aqui como a cultura em suas mais diferentes expressões, ruína, pois é indício do que foi e potência futura, registro e promessa, sendo trabalho do alegorista (aquele interessado em ressignificar o já ido e a “contar a história que a História não conta”)5, desvendá-la, liquidar as totalidades constituídas e conclamar a significados fora daqueles contextos, a fim de expor a história como história mundial do sofrimento e significativa nos momentos de declínio.

As concepções benjaminianas – como ruína, fragmento, estilhaço deslocado do tempo linear, história como construção e tempo saturado de agoras a liberar o futuro que o passado não teve, bem como a conceituação de barbárie como cultura, memória, experiência e construção de outra tradição, diferenciada daquela que é violência, poder, estado de exceção, perigo e terror – permitem o entendimento desse nosso passado ainda presente e espedaçado, mais que referência, como objeto de conhecimento para a construção do futuro, de um viver histórico não linear, de um real constituído a partir do trauma e do abjeto, da destruição, da cultura como ferida de tal devastação, retornada como recalque, que é o fragmento silenciado do vivido, agora restituído e a antecipar futuros, repetição e retorno inerentes à sociedade de produção e consumo em série, pautada pela dinâmica do descarte e da circulação de tudo como mercadoria, que a leitura anacrônica e crítica de suas partículas revistas pode produzir novo campo de tensões, antever latências e crises a fim de constituir um diferente vir a ser, “para que amanhã não seja só um ontem com novo nome”6.

O volver do reconhecimento da fragilidade de nossas políticas públicas reimplica-nos a exacerbar a diligência quanto ao fortalecimento e garantia de estabilidade até mesmo das mais singelas conquistas. Tomando cultura e educação como alicerces da constituição dos grupos humanos e do próprio indivíduo, como campo de tomada de consciência e afirmação da liberdade, emergem, nesse contexto, como domínios a serem defendidos e caucionados na esfera pública em suas concepções de como essencialmente democráticas e humanistas, livres de formalismos estéreis, mas que alcancem, elas sim, a concretude, como são concretos os homens. Conforme propôs Paulo Freire (1921-1997), que sejam práticas da liberdade, escapes da alienação ou minimização da consciência, que permitam ao homem ser sujeito de si mesmo e ao povo ser sujeito de sua história. Torna-se, portanto, urgente e crítico o esforço, sobretudo pelas comunidades acadêmica, cultural, científica e artística, vilipendiadas e dispersas sobremaneira nos últimos anos no país, na reconstrução sólida de educação e cultura que renovem os laços das possibilidades de investigação e criação, que escapem de imposições verticalizadas – como as propostas pelos meios de comunicação, pela indústria cultural, pela mercantilização do ensino e pelo mau uso das tecnologias – e resgatem a liberdade criativa e o conhecimento desmistificado.

O número 14 da Revista ARA, procura nos acionar a tarefa árdua e ética do trabalho incansável em busca da realização da justiça social e do conhecimento, ao mesmo tempo, de preservação e estímulo do fulgor, ainda que em meio ao obscuro e ao precário, na certeza de que “gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”7, é espelho das estrelas e reflexo do esplendor. Convoca-nos a transvalorar a violência e o medo recentemente vividos em amor e destemor, a atravessarmos a escuridão da noite a cismar nossos quefazeres para um amanhecer luminoso e solar à nossa frente, a cuidarmos de germinar nossas flores entre qualquer rancor 8. A revista, em seu apreço zeloso pelo coletivo e pela diversidade, abre sua chamada para trabalhos comprometidos com propostas de revalorização das instâncias culturais, artísticas, científicas, ambientais, sanitárias e educacionais, em variadas formas, artigos, ensaios, imagens e outros, tendo como fim a contribuição na ampliação dialógica dos temas que hoje nos são caros e urgentes, bem como compreendermos nossos silêncios e estupefações recentes. Vladimir Maiakovski (1893-1930), no poema que inspira o número 14 de ARA, em debate com o Sol, é convocado por este a resplandecer tanto quanto o astro celeste, entre seus trabalhos de elevação da consciência social do povo e sua produção poética, missão e disposição que, hoje, cabe a cada um, a cada gente para que brilhe e, juntos, brilhemos mais.

“Anda, quero te dizer nenhum segredo
Falo desse chão da nossa casa
Vem que tá na hora de arrumar

[…]

Vamos precisar de todo mundo
Pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
Vamos precisar de muito amor.”

(BETO GUEDES, O sal da terra, 1981)

Notas

1. Vladimir Maiakovski, A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha, 1920 (tradução Augusto de Campos).

2. Plataforma política do governo Michel Temer (2016-2018).

3. Gonzaguinha, É, 1988.

4. Tese 14 sobre o conceito de história, 1940

5. Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino/ GRES Estação Primeira de Mangueira, História para ninar gente grande, 2019.

6. Emicida, AmarElo, 2019.

7. Caetano Veloso, Gente, 2018.

8. Ver Taiguara, Carne e osso, 1971.

Bibliografia citada

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232 (Tese 14 sobre o conceito de história).

____________. Origem do drama trágico alemão (ed. e trad.: João Barrento). Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

MAIAKOVSKI, Vladimir. “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha”, 1920 (tradução Augusto de Campos), in PITHON, M.; CAMPOS, N. (orgs.). Poemas russos. Belo Horizonte: Viva Voz/FALE/ UFMG, 2011, p. 20-23.

Estão abertas até dia 16 de novembro de 2022 as submissões para a Revista ARA 13

Quote

Estão abertas até dia 16 de novembro de 2022 as submissões para a Revista ARA 13, cujo tema é: Tensão e Contensão, com texto de apresentação da Profa. Dra. Regina Lara Silveira Mello.

Baixe aqui o texto da  ChamadaARA13

Divulguem e participem.

 

As ruínas são o mais intenso da arte na medida em que
os múltiplos passados ​​a que se referem de forma incompleta aumentam seu enigma e exacerbam sua beleza. A originalidade do nosso mundo planetário passa por um deslocamento desse enigma, um deslocamento que alguns artistas contemporâneos perceberam.

Marc Augé, 2010 [2003]. p.99 (tradução nossa)

 

Recém saídos do momento extremo da pandemia que assolou o mundo, constatamos, entre ruínas, o que nos resta. Logo no início os que podiam permanecer isolados em suas casas, mas virtualmente conectados, discutiam benefícios improváveis como a diminuição da poluição pela ausência de carros nas ruas, circulavam imagens de paisagens outrora escondidas que ressurgiam limpas e se espalhava uma sensação de que o tempo estaria mais lento, sugerindo uma pausa para reflexão. Aos que estavam nas ruas, empurrados pela necessidade de optar entre morrer de fome ou de covid, o tempo corria bem acelerado na busca de alguma urgente proteção às necessidades básicas. A paisagem de uma grande metrópole como São Paulo, ficou repleta de pessoas em situação de extrema pobreza dormindo nas ruas, precariamente cobertos quando possível. O descompasso entre tempos e paisagens tão diversas revelaram tensões, esticaram ao máximo, ou não, as diferenças entre os homens.

A Revista ARA, em sua 13a. edição, nos convida a pensar as palavras tensão e contensão[1] nas mais diversas aparições. A percepção desse novo momento exige contenção, aponta para um grande esforço de visualização do que aparece e o que se esconde, entre o vazio que se vê como contorno e a forma, entre continente e conteúdo. Seria como se chegássemos em um mundo novo repleto de problemas antigos, observássemos o que restou e se transforma em tempo presente. O que permanece? O que será restaurado? O que será esmagado pelo esquecimento ou ficará no passado?

Conforme Marc Augé nos provoca, memória e esquecimento guardam a mesma relação com a vida e a morte; morrer faz parte da vida assim como o esquecimento é parte da memória (1998). E a morte foi assunto recorrente em tempos recentes, seja nas famílias ou no noticiário, deixou pegadas marcadas na alma das pessoas. A ideia de traços de memória para Augé remonta ao princípio da psicanálise em sua relação com o lembrar e esquecer, assim como Georges Didi-Huberman (2013) o fez, ao elaborar o conceito de sintoma, pensando a obra de Aby-Warburg. Foi, aliás, outra grande tragédia de repercussão mundial, o Holocausto, que fez Didi-Huberman refletir sobre as possíveis representações deste sofrimento, ao visitar o Museu de Auschwitz-Birkenau na Polônia, relatado no livro “Cascas“ (2017). Assim como neste ensaio poético que observa os limites da exposição destas ruínas transformadas em museu, filmes, músicas, pinturas e outras formas artísticas surgiram em função das lembranças que ainda hoje ecoam.

Em pleno século XXI, entre o excesso de informações da internet, verdadeiras ou falsas, como as famosas fake-news que muitas vezes não conseguimos conferir, vivemos numa sociedade do consumo exacerbado, do grito de muitas vozes simultâneas convivendo com o silêncio profundo dos que viram de perto as mazelas do mundo, como os soldados que voltavam quietos da guerra, pois a realidade se mostrara bem diferente do que a utopia da luta prometera, como aludiu Walter Benjamin (1994). Ainda há guerras, ainda há utopias sendo constituídas e alimentadas nos meios de comunicação; nos comovemos vendo em close nas câmaras pessoas feridas em cidades bombardeadas pela guerra na Ucrânia enquanto caminhamos em silêncio entre ruínas de nossas próprias cidades. Há um distanciamento do espaço, do território ocupado pelo mundo real e o percebido no virtual entre dispositivos, que aumenta a necessidade de imaginar para compor uma narrativa, completar o vazio entre fatos para contar a história. Segundo Augé “o que esquecemos não é a coisa em si, os acontecimentos simples e difíceis como aconteceram (a “diegese” na linguagem dos semioticistas), mas a memória”.

Quais serão as repercussões na arte contemporânea? Artistas descrevem processos de criação como uma alternância de tensões e desejos estéticos que estiram os limites expressivos com momentos de contensão, que concentram esforços. O flow, conceito desenvolvido por Mihaly Csikszentmihalyi (1998), descrito como um fluir de ideias correntes vivido pelo artista nos processos criativos, de intensa clareza mental combinada com intuição, incorporando repertórios e motivações em tempo não linear. As recordações, segundo Augé, são dispersas em traços aparentemente inofensivos que surgem de repente na mente de quem se abandona a devaneios ou se esforça por reconhecê-las, tanto ausências quanto presenças. O que se vê e pode ser tocado traz sempre a certeza do retorno, daquilo que um dia se voltaria a ver, pois existe materialmente no mundo real. E no mundo virtual, como assegurar o retorno às lembranças, se precisamos necessariamente de dispositivos específicos para acessar e recordar?

O tempo vem sendo acelerado de tal forma, sendo subdividido em minúsculas métricas e não é mais possível contá-lo mentalmente com o gesto das mãos, como nos aponta Paul Virilio (2008). Os dispositivos, porém, completamente incorporados ao nosso cotidiano, impõem constante atualização com softwares mudando de acordo com as grandes corporações que dominam a distribuição de informações. Há um risco eminente à preservação da obra de arte que utiliza meios digitais, tanto em museus quanto em coleções privadas, pois o patrimônio pode se esvair sucumbido em arquivos indecifráveis por não mais se abrirem. Uma discussão, não tão recente, tem permeado a preservação de obras que incorporam elementos gestuais e sonoros como performances e instalações interativas. Quando o artista ainda está presente entre nós, consultá-lo é uma alternativa à recriação da obra; mas restaurar com documentos de registro exige, certamente, um novo esforço de imaginação. Como preencher os vazios entre informações que reúnem tempos diversos, como decidir o que deve ser restituído ao estado original?

 Observar falésias pela corrosão que desenha espaços intrigantes, ouvir as pausas que estimulam a imaginação entre notas musicais, perceber o deslocamento possível é o convite que a Revista ARA estende aos inquietos, que desejem partilhar reflexões em artigos, resenhas de livros ou filmes, imagens deste tempo complexo em que vivemos. Venham.

Referências

AUGÉ, Marc. Las formas del olvido. Barcelona: Editorial Gedisa, 1998.

AUGÉ, Marc. El tempo em ruinas. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003.

AUGÉ, Marc. Imaginar a humanidade: para uma antropologia dos fins. Cadernos de campo, São Paulo, n. 18, p 221-232, 2009.

BENJAMIN, Walter. “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras Escolhidas. v. 1.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Creatividad: El fluir y la psicologia del descubrimiento y la invención. Buenos Aires: Paidós, 1998.

CONTENÇÃO. In.: Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: melhoramentos. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/contens%C3%A3o/ . Acesso em: 12 set. 2022.

CONTENSÃO. In.: Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: melhoramentos. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/contens%C3%A3o/ . Acesso em: 12 set. 2022.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

PAOLI, Stéphane (2008). Paul Virilio: Penser la vitesse. Documentário, 90 min. La Générale de Production ARTE France.  Disponível em: https://youtu.be/-zbdiFqbTnw. Acesso em: 12 set. 2022.

 

 

[1] CONTENÇÃO [etimologia – do latim contentio] encerra dois significados:  1. Ato de contender; contenda, litígio, questão. 2. Esforço demorado, grande aplicação.

CONTENSÃO [etimologia – voc comparativo de com+tensão] apresenta sutil diferença: 1. Estado de forte concentração mental; absorção, atenção, tensão. 2. Grande esforço ou aplicação intelectual.    

 

Ampliado NOVO prazo para entrega das submissões Revista ARA FAUUSP n.12 para 10/05/2022

 

 

Artes: outros modos de produção e recepção?


(…) Tratava-se do pressentimento de que o pensamento humano, mudando de forma, mudaria de modo de expressão; a idéia capital de cada geração não se escreveria mais no mesmo suporte e nem da mesma maneira, e o livro de pedra, tão sólido e tão durável, cederia vez ao livro de papel, ainda mais sólido e mais durável. Assim sendo, a vaga fórmula do arquidiácono escondia um segundo sentido; ela significava que uma arte destronaria outra. O que a frase queria dizer era: a imprensa matará a arquitetura. Victor Hugo,(1830) 2013, p.189

Na maré de incertezas e inseguranças quanto ao presente e carência de perspectivas para o futuro, reencontramos nas mais diversas linguagens da arte meios de sobreviver, acalmar nossos espíritos, alimentar esperanças e expandir indignação perante infinitude de perversidades. Por meio da música, da literatura, das artes cênicas e do cinema, das produções audiovisuais independentes e documentários, das artes plásticas, gráficas e visuais, somos acalentados ou provocados pela sensibilidade artística. As artes nos vestem de possíveis sonhos para imaginar o apaziguamento climático, a recomposição dos biomas naturais, o reverdecer dos povos originários e das minorias étnicas, femininas, sociais e políticas em distribuição mais justa do alimento e das condições de vida, para algo mais que a tenaz luta hodierna pela sobrevivência. Doses de humanidade poderiam cair como chuva torrencial, além de molhar nosso planeta com solidariedade, bondade e alteridades geopolíticas. A promessa da revolução digital se mostra cada vez mais avessa à democratização da informação, assistimos atônitos à enxurrada de mentiras, inversãodefatos,ódioedesinformação.Aesperadadosedehumanidadenãocaidocéufeitochuva, mas nasce da pele e brota pelo suor, nos poros do esforço e no embate por existir e resistir, respiramos e exalamos arte, sensibilidades belas ou sofrimentos, melodias em palavras, gestos ritmados a pensar e instaurar lugar no mundo. Enfrentamos o atual dilema: o digital matará o humano? A revista ARA convida todos a pensar em outros modos de produção e recepção da arte, e por meio desta chamada indagativa, reaviva debates acerca das linguagens, perguntamos em coro: o que está acontecendo no modo do fazer artístico? Quais são os outros modos de produção do universo digital? É possível se emocionar assistindo a uma peça teatral online? Há alguma novidade em feituras manuais e processos criativos? E sobre observar, escutar e fruir? A recepção mudou? O aqui e agora da obra de arte, por mais perfeita que seja sua reprodução, disse Walter Benjamin, encerra sua autenticidade, porém, também a liberta do domínio de sua tradição. A existência em massa, da qual o autor, amplia sua recepção e “atualiza o objeto reproduzido”. (BENJAMIN, (1935-38) 2017, p.15) Se em meados da década de 1930 o cinema era o agente poderoso em voga, hoje estaríamos diante de outro meio, seria possível pensar a produção e a recepção digital? Deste processo intensamente vivenciado nos períodos de isolamento social em meio a pandemia, nos anos de 2020 e 2021, do que se trata ao acompanhar um espetáculo teatral online do sofá de casa, visitar uma exposição ou participar de um show ao vivo ou no vocábulo atual, às populares Lives mediadas porumatela?Megas e terabytes são capazes de nos emocionar? Qual espaço percorremos sem caminhar e sem movimentar nossos corpos ao visualizar pinturas e esculturas por meio de um tour virtual em uma maquete eletrônica?
Nesse mar de manifestações transmitidas por telas, a exclusão daqueles menos favorecidos se escancara. Para acesso aos inúmeros eventos é preciso rede de dados veloz sem intermitência e computadores, celulares ou tablets atualizados. Dados de pesquisas recentes1 apontam que a falta de conexão está diretamente ligada à renda, tanto pelo acesso a dados e banda larga, como celulares mais robustos e até mesmo computadores. Assim, perguntamos se a dimensão emancipadora da arte estaria se ampliando ou restringindo com a propagação online das manifestações artísticas. E a produção? Se “tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”, estaríamos diante de um paradigma do qual Guy Debord já anunciou passado meio século, o espetáculo como movimento autônomo do não-vivo, como a relação social entre pessoas mediadas por imagens. Se o espetáculo é o modo de produção, estaríamos chegando ao ponto em que a relação se faz somente entre imagens que intermediam pessoas? Enquanto transforma-se os modos de existência das sociedades os modos de percepção acompanham tais alterações e enfim, o que se agrega e o que se perde com outros modos de produção e recepção? Quem está inserido e quem está excluído? Uma das principais contribuições da teoria estética da recepção, pelo crítico literário alemão Hans Robert Jauss, é a ênfase de que obras de arte só existem dentro da moldura, configuradas pela recepção, ou seja, pelas interpretações que deles foram feitas ao longo da história. Esta recepção é uma fórmula aberta entre a correção e a formulação de nossas experiências. Sua estética acentua de forma particular a historicidade e o caráter público da arte ao colocar em seu centro o sujeito que percebe e o contexto em que as obras são recebidas. Se em meados do século XIX a imprensa atemorizou outras formas de ler o mundo, o mundo digital incita outros modos de produção e recepção das artes? A Revista ARA convida a comunidade acadêmica, entre alunos e docentes, colaboradores e estudiosos, a pensar sobre os outros modos de produção e recepção das artes, tendo em vista o entendimento amplo da arte para as mais variadas e diversas linguagens e suportes, da música ao cinema, do teatro às artes plásticas, da literatura e poesia às artes públicas e urbanas, da performance à dança. Indaga sobre as diferenças aceleradas ao acesso dos canais e meios digitais, estaríamos ampliando as exclusões perante obstáculos financeiros para acionar dados e conexão de internet em boas condições? Ampliamos o fosso das desigualdades perante as promessas digitais e vivenciamos abismos sociais causados pela exclusão sócio digital? Como é possível ler essas transformações em meio ao bombardeio de dados que nos acomete diariamente? Ações participativas, ativação em comunidades seriam caminhos para atenuar abismos e fronteiras sensíveis?


amanda saba ruggiero


BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. in Walter BenjaminEstética e sociologiada arte.Trad. João Barreto. Belo Horizonte: Autêntica,2017. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: contraponto, 1997. HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame. trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar.2013. JAUSS, Hans Robert.Pequeña apología de la experienciaestética.Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós,2002.


1 Estudo realizado pela PwC e o Instituto Locomotiva, e TIC Domicílios realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, publicados em 13 de set. de 2021 em matéria do Jornal Estado de S.Paulo, no caderno “Economia e Negócios”.

CHAMADA aberta para REVISTA ARA 12 • Artes: outros modos de produção e recepção?

A equipe da revista ARA e seu conselho editorial convida todos a participar da 12ª edição ARA YMà Outono + Inverno 2022 , enviando artigos e ensaios sob o tema:

Artes: outros modos de produção e recepção?

por amanda saba ruggiero

 

(…) Tratava-se do pressentimento de que o pensamento humano, mudando de forma, mudaria de modo de expressão; a idéia capital de cada geração não se escreveria mais no mesmo suporte e nem da mesma maneira, e o livro de pedra, tão sólido e tão durável, cederia vez ao livro de papel, ainda mais sólido e mais durável. Assim sendo, a vaga fórmula do arquidiácono escondia um segundo sentido; ela significava que uma arte destronaria outra. O que a frase queria dizer era: a imprensa matará a arquitetura.

 Victor Hugo,(1830) 2013, p.189

Na maré de incertezas e inseguranças quanto ao presente e carência de perspectivas para o futuro, reencontramos nas mais diversas linguagens da arte meios de sobreviver, acalmar nossos espíritos,  alimentar esperanças e expandir indignação perante infinitude de perversidades. Por meio da música, da literatura, das artes cênicas e do cinema, das produções audiovisuais independentes e documentários, das artes plásticas, gráficas e visuais, somos acalentados ou provocados pela sensibilidade artística. 

As artes nos vestem de possíveis sonhos para imaginar o apaziguamento climático, a recomposição dos biomas naturais, o reverdecer dos povos originários e das minorias étnicas, femininas, sociais e políticas em distribuição mais justa do alimento e das condições de vida, para algo mais que a tenaz luta hodierna pela sobrevivência. 

Doses de humanidade poderiam cair como chuva torrencial, além de molhar nosso planeta com solidariedade, bondade e alteridades geopolíticas. A promessa da revolução digital se mostra cada vez mais avessa à democratização da informação, assistimos atônitos à enxurrada de mentiras, inversão de fatos, ódio e desinformação. A esperada dose de humanidade não cai do céu feito chuva, mas nasce da pele e brota pelo suor, nos poros do esforço e no embate por existir e resistir, respiramos e exalamos arte, sensibilidades belas ou sofrimentos, melodias em palavras, gestos ritmados a pensar e instaurar lugar no mundo. Enfrentamos o atual dilema: o digital matará o humano? 

A revista ARA convida todos a pensar em outros modos de produção e recepção da arte, e por meio desta chamada indagativa, reaviva debates acerca das linguagens, perguntamos em coro: o que está acontecendo no modo do fazer artístico? Quais são os outros modos de produção do universo digital? É possível se emocionar assistindo a uma peça teatral online? Há alguma novidade em feituras manuais e processos criativos? E sobre observar, escutar e fruir? A recepção mudou? 

O aqui e agora da obra de arte, por mais perfeita que seja sua reprodução, disse Walter Benjamin, encerra sua autenticidade, porém, também a liberta do domínio de sua tradição. A existência em massa, da qual o autor, amplia sua recepção e “atualiza o objeto reproduzido”. (BENJAMIN, (1935-38) 2017, p.15) Se em meados da década de 1930 o cinema era o agente poderoso em voga, hoje estaríamos diante de outro meio, seria possível pensar a produção e a recepção digital? Deste processo intensamente vivenciado nos períodos de isolamento social em meio a pandemia,  nos anos de 2020 e 2021, do que se trata ao acompanhar um espetáculo teatral online do sofá de casa, visitar uma exposição ou participar de um show ao vivo ou no vocábulo atual, às populares Lives mediadas por uma tela? Megas e terabytes são capazes de nos emocionar? Qual espaço percorremos sem caminhar e sem movimentar nossos corpos ao visualizar pinturas e esculturas por meio de um tour virtual em uma maquete eletrônica? 

Nesse mar de manifestações transmitidas por telas, a exclusão daqueles menos favorecidos se escancara. Para acesso aos inúmeros eventos é preciso rede de dados veloz sem intermitência e computadores, celulares ou tablets atualizados. Dados de pesquisas recentes apontam que a falta de conexão está diretamente ligada à renda, tanto pelo acesso a dados e banda larga, como celulares mais robustos e até mesmo computadores. Assim, perguntamos se a dimensão emancipadora da arte estaria se ampliando ou restringindo com a propagação online das manifestações artísticas. E a produção? 

Se “tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”, estaríamos diante de um paradigma do qual Guy Debord já anunciou passado meio século, o espetáculo como  movimento autônomo do não-vivo, como a relação social entre pessoas mediadas por imagens. Se o espetáculo é o modo de produção, estaríamos chegando ao ponto em que a relação se faz somente entre imagens que intermediam pessoas? Enquanto transforma-se os modos de existência das sociedades os modos de percepção acompanham tais alterações e enfim, o que se agrega e o que se perde com outros modos de produção e recepção? Quem está inserido e quem está excluído?

Uma das principais contribuições da teoria estética da recepção, pelo crítico literário alemão Hans Robert Jauss, é a ênfase de que obras de arte só existem dentro da moldura, configuradas pela recepção, ou seja, pelas interpretações que deles foram feitas ao longo da história. Esta recepção é uma fórmula aberta  entre a correção e a formulação de nossas experiências. Sua estética acentua de forma particular a historicidade e o caráter público da arte ao colocar em seu centro o sujeito que percebe e o contexto em que as obras são recebidas. Se em meados do século XIX a imprensa atemorizou outras formas de ler o mundo, o mundo digital incita outros modos de produção e recepção das artes? 

A Revista ARA convida a comunidade acadêmica, entre alunos e docentes, colaboradores e estudiosos, a pensar sobre os outros modos de produção e recepção das artes, tendo em vista o entendimento amplo da arte para as mais variadas e diversas linguagens e suportes, da música ao cinema, do teatro às artes plásticas, da literatura e poesia às artes públicas e urbanas, da performance à dança. Indaga sobre as diferenças aceleradas ao acesso dos canais e meios digitais, estaríamos ampliando as exclusões perante obstáculos financeiros para acionar dados e conexão de internet em boas condições? Ampliamos o fosso das desigualdades perante as promessas digitais e vivenciamos abismos sociais causados pela exclusão sociodigital? Como é possível ler essas transformações em meio ao bombardeio de dados que nos acomete diariamente? Ações participativas, ativação em comunidades seriam caminhos para atenuar abismos e fronteiras sensíveis?  

 

 

 1. Estudo realizado pela PwC e o Instituto Locomotiva, e TIC Domicílios realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, publicados em 13 de set. de 2021 em matéria do Jornal Estado de S.Paulo, no caderno “Economia e Negócios”.

Referências 

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. in Walter Benjamin Estética e sociologia da arte.Trad. João Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: contraponto, 1997.

HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame. trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar.2013.

JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética.Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós, 2002.

 

Revista ARA 11 PYAU • Outro ato. Em direção ao caminho inverso primavera + verão 2021

Está disponível, para acesso gratuito a Revista ARA 11 PYAU •  Outro ato. Em direção ao caminho inverso Primavera + Verão 2021 

É com grande satisfação que apresentamos o número 11 da Revista ARA FAUUSP. Mais uma edição, agora envolta em múltiplos significados devido às circunstâncias insólitas que todos enfrentamos. O fundamento desta empreitada realizar uma revista acadêmica voltada à cultura artística é capturar as sensibilidades possíveis que assomam na realidade presente. Assim, o insólito nos encalça duplamente: a produção prática da edição, submetida às dificuldades das ausências; e o espírito do tempo … este que parece ter dado um piparote em nossas consciências já bastante aturdidas. A finalização de mais um número da Revista ARA FAUUSP resume a tática de manter posições, cuidar do imediato fortalecendo -o – aguardando novas pistas da conjuntura. E assim, ir “caminhando em direção ao caminho inverso”, como sugere a chamada para este número, inspirada em Clarice Lispector. Confira editorial completo de Luiz Recaman neste link

Acesse a revista completa AQUI.

Acesse o experiente da Revista ARA 11 

Para todas as edições da Revista ARA, acesse o portal de revistas da USP em:

https://www.revistas.usp.br/revistaara/index

 

REVISTA ARA 11 – Em breve lançamento

Em breve será lançada a edição da Revista ARA 11  com o tema  “Outro ato: em direção ao caminho inverso”, que em parte homenageia Clarice Lispector, em seu centenário. Excerto publicado inicialmente em 1962 na revista Senhor mantém atualidade, neste período em que se almejam transformações. Uma vez mais ARA busca estimular reflexões sobre a cultura contemporânea.

AGUARDEM chamada para edição ARA 12 !

 

 

NOVO PRAZO para submissão artigos ARA 11 – 02 agosto de 2021

Em função da mudança no Calendário Escolar, ante a crise epidêmica, o Conselho Editorial da Revista ARA ampliou prazo para submissão de artigos, resenhas e ensaios para dia 02 de Agosto de 2021.

O tema para as submissões da Revista ARA FAU USP 11: “Outro ato: em direção ao caminho inverso”, em diálogo com trecho de Clarice Lispector. Visa convidar para participar de debates culturais, ativos neste momento e em múltiplas formas. Neste início de 2021, promessas e perguntas ocorrem em cena nebulosa. Sobram incertezas, pois respostas a cada instante são alteradas. Certas decisões escancararam ausência de políticas públicas, dissimulação e ocultação de limites. Em nome da ciência, despontam narrativas e teatralizações sobre dados, para convencer de que a situação pandêmica está controlada, em várias mídias. No entanto, a cultura em geral busca espaços, desvios, saídas, para se expressar via telinhas.

 

OUTRO ATO

Apresentação

” […] estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização” (Clarice Lispector,1998, p.173).

O tema proposto para a edição número 11 da revista ARA FAU USP, em parte homenageia Clarice Lispector, em seu centenário, daí o explicativo no título – “Outro ato: em direção ao caminho inverso” -. Excerto publicado inicialmente em 1962 na revista Senhor mantém atualidade, neste período em que se almejam transformações. Uma vez mais ARA busca estimular reflexões sobre a cultura contemporânea. A palavra ara em tupi-guarani refere-se a tempo em seu aspecto circular, ligado à natureza. Urge se opor a certa tendência focada em destruí-la. Entende-se que este elo fulcral vem sendo expresso em muitas áreas, a citar, história, artes, cultura, antropologia, filosofia, entre outras, sendo um convite transdisciplinar.

Vivencia-se um enclave em vários aspectos e com distintas interpretações, não raro ainda polarizadas, repetindo-se tantas outras que geraram fosso indesejável, tanto entre humanos, quanto destes com a natureza. Ainda assim, uma convergência reside no desejo em se alterar este período, seguindo em caminho inverso. Existem os que inquirem se a humanidade sairá melhor, após os embates relativos à Covid 19, mal causado pelo SARS-COV-2, chamado coronavírus. Decorrem de pavor e perplexidade, ante tantas vidas humanas perdidas. Igualmente há pessoas sensíveis sobre males sociais, educacionais, culturais e em esferas como habitação, trabalho, esportes, política dentro e fora do país.

Selecionou-se trecho escrito por Clarice Lispector, na revista Senhor, nomeado por “Em direção ao caminho inverso”, datada de três anos após o início da publicação (1962). A sugestão foi lembrada pelo conselheiro da revista ARA FAU USP, Celso Favaretto, após o GMP (Grupo Museu/ Patrimônio FAU USP), debater conceitos voltados ao par ato e potência, em trabalho de trocas, sempre muito proveitoso.

O presente tema invoca formular saber inédito e reflexões, em submissões por palavras e/ou imagens e movimento, fatores considerados essenciais e indispensáveis nesta revista universitária.     Vale esclarecer e reiterar: 1. o conteúdo não pode ter sido antes exibido pela autoria na íntegra e exatamente igual; ou seja, deve ser inédito, ainda em se tratando de obra do autor da Submissão; 2. importante creditar o trabalho usado de outros em várias linguagens, seja por palavras ou imagem; 3. o envio deve ser acompanhado de autorização do direito autoral firmado por todas as instâncias detentoras de imagens, tanto o artista, ou seus descentes quanto instituição a que pertence a obra; 4. caso haja mais de um autor da Submissão, justificar essa exceção.

O termo Ato emerge de ampla tradição, já na filosofia grega, ou no teatro, em particular aponta às cenas vivenciadas desde 2019 e ainda latentes neste início de 2021, transmitidas diariamente por variadas mídias, na vã ilusão de nos convencer de que tudo está sob controle. Promessas de soluções científicas entram em cena, sendo escaladas, na ilusão de recuperar certezas, esquecendo-se que estas também gravitam em hipóteses, experiências, dúvidas, intuição e razão.

Embates e desconforto contribuíram para que mitos estejam em franco descrédito, algo positivo legado pela pandemia, a gerar indagações sobre o futuro próximo. Reitere-se que práticas em presença foram oportunamente banidas em setores prioritários, mas deu-se o contrário no consumo em geral. Por outro lado, multidões viram-se obrigadas a sair para trabalhar, ou estão em situação de rua, enquanto nós outros, realizamos fazeres em casa por meio de várias telinhas e longe do espaço urbano, esvaziado e segregado.

Lispector em entrevistas revelou que ao criar o livro, “A paixão segundo G.H.” achava-se também em crise, porém no âmbito pessoal. Assim aborda a despersonalização como liberação de aspectos individuais inúteis, parecendo naturalizados, tanto que se está apegada. Ao se livrar de algumas prisões, na volta ao mínimo, cada um ainda pode se identificar como Ser, de maneira visivelmente reconhecível. A centenária escritora afirma no texto referido:

A despersonalização como a destituição do individual inútil – a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. (1962, p.20).

O trecho citado comporá o livro “A paixão segundo G.H.”, um dos mais intrigantes e que sairá editado dois anos depois (1964). Em síntese, desenha e dá fala a uma escultora, nomeada apenas pelas iniciais e residente em elegante apartamento de cobertura. Após a saída da empregada dispõe-se a organizar, arrumar, enfim formatar à sua maneira o espaço doméstico para reintegrá-lo à própria direção. Dentro de linguagem exponencial, enquadra visualidade, reflexão, tempo e espaço de forma poética, com rimas e repetições enfáticas.

Lispector no romance cria imagens em contrastes, entre a artista e a trabalhadora: escultora, única personagem em presença; fala em primeira pessoa; reside em amplo espaço, povoado por objetos; veste robe branco; desfruta de liberdade e em sua atividade laboral, capacitando-a a discorrer sobre a linguagem. Já a empregada aparece em ausência física; realiza árduo trabalho, inviabiliza-se em desejos, enigmas e razões; viveu em micro espaço, agora vazio; descreve-a, como negra, vestida de negro; confinada, sem diálogo ou trocas, fatores reveladores de mais um entre os vários fossos sociais.

Expressa o lado preconceituoso da personagem G.H., como fará depois com Macabea em “A hora da estrela” (1977), outra dessas figuras com invisibilidade social e vida precarizada. Neste classifica sua principal ajudante, como incompetente para a vida (Lispector, 1999, p.24). No texto em exame, ao se dirigir ao quarto da trabalhadora, espécie de avesso da casa, antevê o que acharia na área antes ocupada por Janair. Seria uma alusão a Jano, divindade com duas cabeças, guardião romano? Ela faria esse ato protetor?

G.H. pensa, por certo haverá desorganização, material empilhado, vermelho desbotado em manchas no colchão roto, restos de vida, indícios de outra classe social, pedaços de luta, solidão e abandono. Esta situação contrasta com o que perseguia, ou seja, obsessão por beleza, higiene e ordem. Entretanto, ao adentrar no recinto, surpresas: reinam aparente vazio e limpeza, como escreve, quase hospitalar. Observa apenas suas próprias malas com as iniciais misteriosas e certa claridade, a incidir no espaço, quase imaculado. Ao visualizar o armário, sobressalto – um inseto refugiara-se ali. Desde este instante, sucede-se uma série de interações com a alteridade, em campos, a abranger simbólico, psíquico, social, político, uma viagem às próprias vísceras, algo mágico, a arrebatar o leitor.

Tenta fugir e ao mexer na porta, nova perplexidade, defronta-se com três vultos desenhados a carvão, na parede, que ensejam questões sobre o fazer artístico. Vale sublinhar que Lispector sempre surpreende e introduz o inesperado, o imprevisível, o não mimético. Após inusitadas experiências, próprias da linguagem na cultura artística, em dado momento, desfaz-se de coisas, denominadas inúteis, parecendo espelhar o contorno nu das figuras desenhadas – ou designadas- naquele quarto. Por meio do olhar, G.H. se apossa de detalhes, antes invisíveis, embora em seu cotidiano. Menciona então a existência de um terceiro apoio, quem sabe mais uma perna, que travaria sua caminhada, mas, por outro lado traria maior equilíbrio.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável […]. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz tanta falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. (LISPECTOR, 1998, p.11-12).

A linguagem que propicia emergir seu lado natureza, a par de invisível, indizível e o insólito se constata, em inúmeros períodos e criadores, cito Konrad Fiedler[1] no Século XIX. “O que faz a natureza visível se converter em arte, sem deixar de ser natureza, é o desenvolvimento que, em favor de sua visibilidade, se realiza a atividade artística”. (1987, p.66.Trad. A.). A arte de Lispector caminha entre o dizível e seu oposto, a permear sua linguagem, referenciando-se também na cultura judaico-cristã, ou seja, ao se nomear, não se esquece o ausente. Note-se também o uso de travessões, no início e final do livro provavelmente ênfases.

Eu tenho à medida que designo__ e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la __ e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que insistentemente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas __ volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. (1998, p. 176).

Ao se abordar imagens e palavras cumpre sublinhar a importância delas na formulação de saber, suplantando-se aquelas meramente ilustrativas. A Revista ARA FAU USP tem agregado cinema, psicanálise, filosofia, fotografia, vídeo, museologia, história, geografia, além de arte e arquitetura, entre outras linguagens voltadas ao que as une em fronteiras. Significativo neste momento de expectativas para mutações efetivas e críticas aponta esforço em se trilhar rumos desconhecidos, frestas, vias ainda não veiculadas, fronteiras, exílio e proposições para se trilhar desígnios próprios e se abrir ao coletivo.

Pretende-se com tema incentivar o criar, algo singular, de modo a se dirigir em sentido e direções opostos ao lugar comum narrado. Reconhece-se a acuidade da expressão resiliente, que pode se materializar por distintas formas, como se deseja incentivar na produção de conhecimento esperada, na edição inaugural deste ano de 2021. Constituem diretrizes tanto em submissões, quanto nos estudos do Dossiê, composto por membros do GMP, com mesmo tema e dupla análise. Desejo que cada um contribua e desvele o invisível e o indizível que nos habita!!!

Ciça, Verão, 2021.

 

Referências bibliográficas

FIEDLER, Konrad. Acerca del origen de la actividad artísticaIn: De la esencia del arte. Buenos Aires/ARG: Nueva Visión, 1987.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______ A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

[1] Trecho consultado: Lo que hace que la naturaliza visible se convierta en, sin dejar por ello de ser naturaleza, es el desarrollo que, en favor de su visibilidad, se realiza en la actividad del artista”. Acerca del origen de la actividad artística.