CHAMADA ABERTA ARA 17 Memória na encruzilhada: desmaterialização da experiência e hipertrofia da testemunha

A Revista ARA esé com chamada com o tema: 

Memória na encruzilhada: desmaterialização da experiência e hipertrofia da testemunha

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Baixe a chamada completa escrita por Adrienne de Oliveira Firmo em ChamadaAra17.docx

 

Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.

(Walter Benjamin, 1994, p. 15)

 

As relações entre experiência, testemunho e memória são fundamentais para a compreensão de como processamos e transmitimos nossa história e identidade cultural. Essas relações são intrinsecamente dinâmicas e interdependentes. Pode-se afirmar que a experiência — nosso contato direto e pessoal com eventos ou fenômenos, sobre a qual se baseiam nossa aprendizagem e memória individual — molda o testemunho, que, por sua vez, é a narração de uma experiência, uma forma de compartilhar vivências, contribuindo para a formação da memória compartilhada.

A memória, por um lado, é a capacidade de codificar, armazenar, reter e recuperar informações; por outro, não é apenas um repositório do passado, aos moldes de um banco de dados, mas uma força ativa que influencia o presente e o futuro. É construída tanto pela experiência individual quanto pela validação coletiva, sendo constantemente reavaliada à luz de novos viveres e entendimentos. Assim, a memória se revela como dinâmica e mutável, refletindo a contínua interação entre o vivido e o narrado, entre o passado e as novas realidades emergentes.

Sobre a experiência, Walter Benjamin, em “Experiência e pobreza”, de 1933, já identificava e analisava sua diminuição na modernidade de capitalismo avançado, pela saturação de estímulos e prevalência da informação sobre o conhecimento e a sabedoria, causadas pelo “monstruoso desenvolvimento da técnica”.

Atualmente, dadas as transformações tecnológicas, sociais e culturais em curso, presenciamos notório processo de perda da materialidade da experiência, a desafiar paradigmas tradicionais do vivido e reconfigurar profundamente os modos de relacionamento com o mundo e aquilo que produzimos cultural e materialmente. 

Aspecto proeminente de tais mudanças é a ascensão das culturas digital e virtual, a proporcionar vivências e interações que transcendem espaços físico-temporais e fomentam conexões entre indivíduos e grupos instantaneamente ao redor do globo, promovendo, por um lado, conhecimentos, informações e comunicações, por outro, suscitando questionamentos sobre a autenticidade e a profundidade daquilo que é experienciado.

Entrosamentos esses que permitem ao indivíduo o compartilhamento de suas experiências pessoais acerca dos mais variados temas e acontecimentos na forma de testemunhos legitimadores com um público amplo e múltiplo, que os valoriza como ferramenta para a construção de conexões interpessoais, criação de empatias, intercâmbio de dados e tomada de consciência. Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, de 1998, destaca a dimensão ética do testemunho, a transcender o relato pessoal, para o filósofo a relação entre testemunho e memória é crucial, pois o testemunho se relaciona com o esquecimento, o resto e as ruínas; a testemunha, por sua vez, fala por aqueles que não podem, assumindo a responsabilidade de dar voz ao silêncio e ao indizível, assim, se equilibra entre a potência de dizer algo e a impotência de expressar completamente a experiência,. Agamben sugere que o testemunho revela uma “indivisível intimidade” entre a capacidade e a incapacidade de falar, apontando para uma dimensão do dizer que transcende a verdade factual, neste sentido, por natureza, mais avizinhado da falta que do excesso. 

No contemporâneo ambiente social, digitalmente mediado e saturado de informações e relatos, a amplificação, tanto do papel do testemunho como da satisfação pela experiência sem concretude, manifesta-se como desafio à constituição e à partilha de memórias autênticas e pertinentes, seja no meio digital ou em sua dilatação à esfera material da vida, uma vez que as narrativas individuais e os testemunhos pessoais podem ser facilmente perdidos, distorcidos ou forjados, a considerar, ainda, a multiplicidade e fecundidade de histórias particulares que competem por atenção e validação, dificultando a formação da compreensão comum do passado, a tecitura do presente e o engendramento do futuro, sobretudo, se ainda considerarmos que, estruturalmente, o meio digital e as relações nele firmadas são ajustados mediante condições de controle e direcionamento definidas a fim de sustentar interesses econômicos e políticos que extrapolam territórios e comunidades, a intervir mesmo nas interações interpessoais por meio de análises de dados e conjuntos de instruções, na maior parte das vezes, imperceptíveis por aqueles que estão em diálogo, mas preestabelecidos e a visar objetivos impertinentes a eles. De maneira que nos resta a tarefa de fazer da cultura na era digital espaço de contrapoder e não terreno para o florescimento de formas atualizadas de barbárie.

Com o propósito de investigar e debater publicamente tais características da contemporaneidade cultural e social, a Revista Ara, em seu número 17, propõe a discussão acerca da memória, do estatuto da experiência e aspectos de seu depoimento, em tempos carentes de tangibilidade e exacerbação de relatos.

Bibliografia citada

AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, vol. I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-19.

________. Obras escolhidas, vol. I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 15.